VAMOS EMANCIPAR DRUSCYLLA?

29/03/2022 12:51

Druscylla (nome fictício) é uma bela jovem de trato delicado e gentil, mas com passos firmes e decididos. Sua pouca idade (vinte anos na época do tratamento) já contava com algumas experiências amorosas. Delas - e por causa delas - aprendeu que a vida impõe bônus e ônus para todos os amantes.

Buscou a Psicanálise com a queixa de que se sentia frígida e desinteressada pelos homens. Quando consegue estabelecer algum vínculo mais sério com um pretendente, algo a impede de prosseguir, ocasionando uma ruptura brusca no relacionamento.


1 - História da paciente

Chegou adiantada para a primeira sessão. Meiga e acanhada, sentou-se delicadamente no divã. Mesmo tímida, não conseguia esconder sua apreensão e ansiedade, denunciadas pelo enrubescer de sua pele de seda.

Assim foi nosso primeiro contato. Daí em diante nossos encontros foram seguidos de diálogos francos e divertidos - a jovem demonstrou ter um ótimo senso de humor. Druscylla foi se abrindo aos poucos e revelando aspectos importantes de sua vida, sobretudo de sua infância e de sua relação com os pais.

Segundo a paciente, sempre teve uma admiração bastante significativa por seu pai, com o qual mantém uma relação simbiótica até a presente data. Suas referências retornavam sempre para a figura paterna em todo o processo analítico. A mãe, por outro lado, é apresentada como uma figura de conflitos. Sem diminuir o carinho e respeito que tem por ela, demonstrou um incômodo bastante acentuado em sua relação, que, segundo Druscylla, encontrava sempre um motivo para brigas e discussões "sem objetivo prático", nas palavras da paciente.

Possui um irmão mais jovem, do qual falou pouco durante todo o tratamento, mas que garante manter com ele um relacionamento harmonioso.

Os ventos começaram a mudar de direção na vida de Druscylla após o fim de um relacionamento amoroso que teve com um jovem de mesma idade por dois anos.

Em seu relato, a paciente revela um intenso amor e também uma grande afinidade com seu parceiro. Segundo o que nos revela, eles se "encaixavam perfeitamente" e ele tinha uma postura bastante semelhante a do seu querido pai. Por fim, a relação teve um final devido a muitas brigas por ciúmes da parte dela. Houve recaídas, mas finalmente o namoro chegou ao fim após o rapaz mudar-se definitivamente para o estrangeiro.

A partir dessa ocasião, Druscylla percebe uma inibição acentuada de seus desejos por outros rapazes e se decide por um período de reclusão para estudos e reflexões. É chegada a hora de se dedicar mais a carreira acadêmica e também é preciso ajudar o pai em seu empreendimento.

O tempo se passou e a bela jovem se deu conta de que essa elipse temporal fora maior que a planejada. Ademais, percebe-se incomodada pela insistência de sua mãe para que busque um novo namorado. Suas amigas, as poucas com as quais se relaciona, deram-lhe um título inusitado. Com as recorrentes recusas em buscar um parceiro e por suas declarações de que não tem sentido interesse por namoros no momento atual de sua vida, recebe o rótulo de frígida. E acredita.

Druscylla percebe que algo não anda bem. Procura observar mais os rapazes em busca de traços ideacionais. Encontra alguns, mas sempre há algo que a afasta deles. Uma tatuagem, o vício por cigarros, a falta de objetivos na vida, o ciúme exagerado e a imaturidade são alguns dos muitos itens elencados pela paciente como motivos para um rompimento.

Druscylla passa, então, a sentir uma angústia que a consome e a conduz a um estado de ansiedade permanente. Sua energia vital se vê em declínio, tanto no trabalho e estudos, como em sua vida social. Sente-se "aprisionada", já que oscila entre repulsa e desistência: por vezes, sente uma leve atração por algum rapaz mas não o deixa se aproximar, em outras ocasiões, uma conversa já é suficiente para perder o interesse por eles.

O "beco sem saída" na qual se encontra nossa paciente a faz decidir-se pela busca de um tratamento psicanalítico no intuito de superar a presente situação. Entretanto, o que levou Druscylla a apresentar o quadro clínico exposto? Como ajudá-la?



2 - Registro cronológico do atendimento

Primeiro encontro: acolhimento. Busca tratamento para superar a fase ruim do término do relacionamento. Se sente frígida e com dificuldade de criar vínculos afetivos.

Segundo encontro: relata os conflitos constantes com a mãe e sua identificação com o pai. Segundo ela, ele é seu "porto seguro". Comunica aspectos importantes de sua infância, principalmente como foi mimada e tratada como uma princesa. Conta que recebeu das amigas o título de "coração de gelo" e ela própria se acha insensível.

Terceiro encontro: Tem dificuldade de escolher os parceiros pois, segundo ela, não sente atração por ninguém. Pensa nas exigências "impostas" pelo pai. Se questiona: "Seria uma auto sabotagem? Por que agradar papai? E se eu desagradar papai?".

Quarto encontro: lembrou que a tatuagem que o ex-namorado fizera sem seu consentimento foi o divisor de águas - houve a quebra do padrão ideacional. Relata que fez sem a aprovação do pai uma tatuagem muito antes desse relacionamento.

Quinto encontro: traz a recordação de um relacionamento com um rapaz que amava muito mas teve que terminar por influência de seu pai. Sugestão para elaborar uma lista de todos os seus relacionamentos em ordem cronológica e dos fatos que levaram ao término com cada um deles.

Sexto encontro: traz para a análise a lista proposta na sessão anterior. Encontra itens que não reconhece como seus. Reflete sobre os "porquês" das exigências impostas pelo pai. Dirijo a ela uma provocação: Vamos emancipar Druscylla? 

Sétimo encontro: apresenta um semblante decidido. Relata estar disposta a abandonar as "roupas velhas" e conceitos ultrapassados. Percebe que não pode viver segundo os padrões e expectativas de seu pai. 

Oitavo encontro: vislumbra um momento novo e passa a focar em suas próprias escolhas. Se sente mais tranquila em relação às exigências de seu pai, compreendendo que precisa se descolar desse padrão e seguir suas próprias escolhas. Proponho um acordo: irá tentar repensar seus próprios conceitos e observar de forma mais aberta os homens ao seu redor. Caso perceba alguma dificuldade, retornará à análise. A proposta foi aceita pela paciente e a análise é interrompida.



3 - Condução do caso

A fase infantil do ser humano é, de todas as outras, o período no qual encontramos o maior número de situações que o leva às formações, tanto de sua estrutura psíquica como de seu caráter. É por tal motivo que Sigmund Freud insistiu, durante todo o seu trabalho, nas questões que envolvem a criança e seu universo particular. Quanto a isso, ele nos orienta que:

O trabalho de análise necessário para o esclarecimento completo e cura definitiva de um caso mórbido não se detém nos episódios contemporâneos da doença; retrocede sempre, em qualquer hipótese, até a puberdade e a mais remota infância do doente, para só aí topar as impressões e acontecimentos determinantes da doença ulterior. (FREUD: 1910: 54).

Seguindo a linha de raciocínio proposta pelo Mestre, procuramos de saída investigar as primeiras lembranças trazidas por nossa paciente referentes à sua infância.

Como Druscylla nos comunica, os primeiros anos de sua vida foram anos de princesa. Era tanto rodeada das atenções maternas, quanto protegida pelos cuidados paternos. Sentia-se profundamente feliz na companhia de seu pai, do qual fala com muito orgulho e com abundantes palavras adjetivas. Seus encadeamentos mentais nos levaram a deduzir que o complexo familiar seguiu numa aparente normalidade, traduzindo de forma bastante fiel a analogia feita por Freud sobre o Complexo de Édipo. 

Druscylla, entretanto, não foi apenas uma menina bem cuidada por parte de seus pais. A análise nos revelou que houve uma profunda superestimação de sua figura, tornando-a mimada e exigente, sobretudo por parte de seu pai. Quanto a isso, 

Freud nos adverte que:

É verdade que o excesso de ternura por parte dos pais torna-se pernicioso, na medida em que acelera a maturidade sexual e também, 'mimando' a criança, torna-a incapaz de renunciar temporariamente ao amor em épocas posteriores da vida, ou de se contentar com menos doses dele (1905: 211).

De fato, nossa paciente nos conta que possuía uma relação bastante próxima com seu pai e que o simples afastamento de sua presença causava nela "uma espécie de ansiedade". Era, então, difícil renunciar a esse amor, na medida em que também era penoso para a bela jovem dividi-lo com sua mãe.

Freud, no artigo Sexualidade Feminina (1931), toca nessa questão ao afirmar que:

O amor infantil é ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos do que isso. Possui, porém, uma segunda característica; não tem, na realidade, objetivo, sendo incapaz de obter satisfação completa, e, principalmente por isso, está condenado a acabar em desapontamento e a ceder lugar a uma atitude hostil (245).

Em outras palavras, o processo de formação do seu Ego já estava sendo operado enquanto que, nas profundezas do seu inconsciente, um sentimento era erguido: a culpa. "Não pode haver dúvida de que o complexo de Édipo pode ser considerado uma das mais importantes fontes do sentimento de culpa com que tão frequentemente se atormentam os neuróticos" (FREUD: 1916, 336).

Como a paciente reorganizou seus sentimentos e pode superar essa fase tão penosa? De fato, a saída para seu conflito tomou um caminho bastante inusitado: a identificação. Druscylla renuncia ao seu amor incestuoso pelo pai e, de posse de sua culpa inconsciente, elege uma outra figura masculina como seu objeto para o qual irá dirigir toda sua libido. Entretanto, esse não pode ser um objeto qualquer. Para Druscylla, será fundamental encontrar em seu novo objeto determinadas características presentes na figura de seu pai. Assim, a bela jovem negocia com seu Ego e, pela barganha, troca o "amor do pai" por um "amor parecido com o pai".

É a partir desse ponto que, conhecendo a história da paciente e a etiologia de sua neurose, pudemos realizar um manejo que obteve um certo êxito.

A paciente já havia elaborado em análise a questão da identificação com seu pai, mas ainda não podia encontrar quais seriam essas identificações e o que isso significaria em termos práticos. Em outros termos, precisava saber o que era seu de fato e o que era influência de sua identificação com o pai. Ou seja, precisava traçar uma linha divisória entre suas próprias expectativas e as expectativas do pai.

Em nosso quinto encontro analítico, sugeri que fizesse uma espécie de dossiê de seus relacionamentos. Solicitei que tentasse lembrar, em ordem cronológica, desde o primeiro ao mais recente relacionamento, fossem eles duradouros ou passageiros. Pedi que procurasse, na medida em que viessem as lembranças, elencar quais eram os impedimentos que a levaram a decidir-se pelos rompimentos.

No encontro que se seguiu, a paciente traz para a análise a tarefa solicitada, e com esmero! Enumera todos os seus casos amorosos e relaciona todos os itens que deram ensejo aos respectivos términos.

No processo de elaboração psíquica, a paciente percebe que muitos desses rompimentos tinham como causa algumas exigências que ela mesma julgava como procedentes. Outros, entretanto, pertenciam a uma espécie de "cartilha" que fora imposta pelo pai. De fato, Druscylla se sentiu ameaçada em seu ideal de Ego, uma vez que passou a perceber-se presa à um padrão que não fora por escolha própria construído. Decide-se emancipar.

O processo de ressignificação alcançado pela paciente possibilitou com que ela viesse a reavaliar alguns conceitos e a "jogar as roupas velhas fora", conforme suas próprias palavras. A análise foi, do ponto de vista técnico, empregado com rigor na medida em que trouxe ao pensamento consciente de Druscylla alguns elementos inconscientes não percebidos anteriormente por ela. Nesse interim, Freud nos ensina que “o sucesso terapêutico, entretanto, não é o nosso objetivo primordial; nós nos empenhamos mais em capacitar o paciente a obter uma compreensão consciente dos seus desejos inconscientes” (1909: 110).

A paciente sentiu-se motivada e decidida a olhar a vida através de outras perspectivas. Conclui que não havia vivido uma vida independente até então e se sente encorajada a buscar por um parceiro segundo suas próprias escolhas.

Mediante a postura da paciente, dirijo a ela uma proposta que é prontamente aceita: Druscylla precisa experimentar o que depreendeu do processo analítico. Irá viver sua vida e observar se consegue eleger seus pretendentes por si mesma. 

Veremos Druscylla outra vez em nosso divã?



4 - Considerações finais

Por amar demais o pai e sentir-se culpada, Druscylla desiste de seu amor e, pela identificação que teve com ele, dirige a sua libido para outros rapazes com características similares. Isso ocasionou relacionamentos cujos rompimentos, como demonstrado pela análise, eram penosos e enigmáticos. A superação se deu pela consciência desses processos inconscientes e pela ressignificação de sua emancipação emocional e afetiva.

O presente relato, deveras conciso, obviamente deixou muitas lacunas ainda não preenchidas no que tange a outros processos que, devido ao interrompimento do tratamento analítico, não puderam encontrar seu caminho de acesso ao consciente.

Contudo, suas queixas iniciais foram respondidas na medida em que Druscylla não se percebe mais como uma jovem frígida e possui encorajamento suficiente para escolher seus parceiros segundo suas próprias expectativas.

Não é possível até o momento do presente relato, saber se o "acordo" estabelecido com Druscylla foi um manejo adequado ou se foi demasiadamente prematuro. Precisamos de tempo, o mesmo tempo que a bela jovem tem a seu favor.



Referências:

FREUD, S. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. VII, 1996.

_________. Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos (1909). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. X, 1996.

_________. Cinco Lições de Psicanálise (1910). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XI, 1996.

_________. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise - Parte III (1916). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XVI, 1996.

_________. Sexualidade Feminina (1931). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, 1996.