O TEMA DA CULPA NO FILME O REI LEÃO
A estreia no dia 17 de julho de 2019 do remake do filme O Rei Leão, enseja a oportunidade de visitarmos um dos temas mais recorrentes no campo da Psicanálise, qual seja, o sentimento de culpa.
Na película em questão, que segue fielmente o roteiro original de 1994, o personagem principal (o leãozinho Simba) sofre um abalo terrível com a morte de seu pai (o rei Mufasa), abandonando o reino e fugindo, pela sugestão de seu tio (Scar), em direção a uma terra distante.
De todos os acontecimentos ulteriores, essa é a cena que transmite maior comoção aos espectadores e constitui a origem dos desdobramentos seguintes, e da qual levantaremos algumas reflexões.
Como dito, para que Simba tomasse a decisão de fugir das Terras do Reino fora necessário que seu tio o tivesse incentivado. Scar põe em ação seu plano maléfico criando uma mentira, fazendo Simba acreditar que fora ele mesmo o responsável pela morte de seu querido e amado pai. Temos, então, plantado de forma artificial na mente do pequeno leão, uma informação falseada que acaba por ser tomada como verdadeira. Essa informação, desde então, toma a forma de uma lembrança encobridora dos reais fatos, lembrança que o acompanhará por um longo tempo.
A teoria psicanalítica nos dá conta de que, durante a infância do sujeito, muitas são as possibilidades de se formarem em sua mente fatos e acontecimentos que, na realidade, jamais existiram. Tais memórias, e os afetos ligados a elas, são responsáveis por ocasionar nas pessoas diversas manifestações psíquicas que causam os mais variados efeitos.
A esse respeito, Sigmund Freud se baseia na observação e análise de suas próprias experiências quanto às lembranças falseadas para asseverar que:
nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal como aparecem nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. (1899: 307).
Assim, nosso personagem passa a acalentar um sentimento que jamais tinha experimentado, o gosto amargo do sentimento de culpa.
Com a ida de Simba para terras longínquas, um novo momento se dá. Na companhia de seus novos amigos, o javali Pumba e o suricato Timão, ele passa a viver sua vida de forma a negar o seu trauma e a recalcá-lo. Adota para si um novo estilo, no qual as responsabilidades e as obrigações da vida cotidiana não fazem parte.
A negação como forma de se defender dos sentimentos indesejados pertence ao grupo de ações protetoras do Ego denominadas Mecanismos de Defesa. Consiste na recusa em reconhecer que determinado fato ou evento ocorreu, provocando no indivíduo um comportamento de indiferença.
Para Freud, "negar algo, no fundo, é dizer: 'Isto é algo que eu preferia reprimir. Um juízo negativo é o substituto intelectual da repressão" (1925: 268).
Simba segue esse modelo na medida em que se entrega a outros deleites como forma de compensação.
É nesse ponto que uma reviravolta está prestes a acontecer. Após a tentativa frustrada de sua velha amiga (a leoa Nala) em tentar fazer com que Simba retorne a sua terra natal, a atuação inusitada de um personagem pouco valorizado merece nossa grande consideração.
Tal como um psicanalista que leva o paciente a confrontar-se com seu próprio eu (self), o mandril Rafiki conduz Simba ao rio para que, pela sua imagem refletida na água, também assim ele possa refletir sobre seu presente e seu passado.
É bastante apropriado o manejo realizado por Rafiki mediante a situação de conflito interno presente em Simba. Primeiro, ele procura diminuir as resistências impostas pela repressão. Concernente a isso, Freud nos ensina que:
se se demonstra um interesse sério nele (o paciente), se cuidadosamente se dissipam as resistências que vêm à tona no início e se evita cometer certos equívocos, o paciente por si próprio fará essa ligação e vinculará o médico a uma das imagos das pessoas por quem estava acostumado a ser tratado com afeição. (1913:154).
Em seguida, Rafiki estabelece com Simba uma boa e favorável transferência. Sobre a questão da transferência na análise, Freud afirma que "essa luta entre médico e o paciente, entre o intelecto e a vida instintual, entre a compreensão e a procura da ação, é travada, quase exclusivamente, nos fenômenos da transferência" (1912: 119).
Por fim, Rafiki incita Simba a confrontar-se definitivamente com seu Ego e enfrentar suas falsas convicções a partir da seguinte pergunta: "Eu sei quem eu sou. Quem é você?"
Há um momento de reelaboração de tudo o que foi vivenciado pelo jovem leão que, de forma a resignificar o sentimento degradante até então reinante em sua pisque, abandona seu sentimento de culpa, como quem descarta uma roupa velha que não lhe serve mais.
Simba retorna às Terras do Reino e, com a ajuda de seus amigos e de todas as leoas que foram escravizadas pela ganância de Scar, fica cônscio da verdade por trás de suas memórias falseadas. Scar se revela um assassino traidor, mas acaba morto por suas próprias seguidoras - as hienas.
O filme termina com Simba tomando posse do seu direito legítimo pelo trono, após ter empreendido cura e se reconciliando com o seu próprio eu (self). Uma cura confirmada pela declaração "Eu estou em paz com meu passado".
Para concluirmos nossas reflexões que tiveram como pano de fundo este belo e instrutivo filme, queremos salientar os efeitos de uma técnica psicanalítica que, quando bem empregada, resulta em restabelecer nos indivíduos o bem estar e a retomada da vida em sua plenitude.
Evandro Carlos Braggio
19 de Julho de 2019
REFERÊNCIAS:
FREUD, S. Lembranças Encobridoras. In: Primeiras Publicações Psicanalíticas. Vol. III das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_________. A Dinâmica da Transferência. In: O Caso Schereber, Artigos Sobre Técnica e outros trabalhos. Vol. XII das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_________. Sobre o Início do Tratamento. In: O Caso Schereber, Artigos Sobre Técnica e outros trabalhos. Vol. XII das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_________. A Negativa. In: O Ego e o Id e outros trabalhos. Vol. XIX das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
O REI LEÃO. Direção: Jon Fraveau. Walt Disney Pictures, 2019 (118 min).