JUNG, O PRÍNCIPE HERDEIRO DE FREUD

24/03/2022 18:10

Introdução

O Príncipe Herdeiro de Freud. Assim era conhecido Jung, médico e psicanalista que inaugurou a Psicologia Analítica. Influenciado pela Teologia, Filosofia e também pelo Espiritualismo, esse importante expoente das áreas psicológicas deixou como legado uma infinidade de obras que modificaram a compreensão da psique humana.

Contudo, qual a razão de ter sido considerado por Freud como a promessa de um sucessor fiel de suas ideias, e de que forma se deu o rompimento entre eles? E o mais importante: o que Jung deixou como contribuição real para a continuidade do saber psicanalítico?

O presente artigo tem como objetivo uma breve exposição da vida e da obra de Jung, bem como seus conceitos fundamentais para a compreensão do estudo da mente.


A vida de Jung

Carl Gustav Jung nasceu em 26 de julho de 1875 em Kesswil, uma pequena vila da Suíça. Desde muito cedo sofreu com a ausência de sua mãe, Emilie, pelos longos períodos de internação devido a sua frágil saúde. Seu pai, Johann, era pastor de uma igreja suíça reformada e foi o responsável por introduzir em Jung a leitura dos escritos bíblicos, o que colaboraria com sua forte religiosidade.

Em uma breve biografia sobre Jung, intitulada simplesmente como Carl Gustav Jung, Ednaldo Varela (2016) nos conta que:

Jung herdou de sua mãe "a capacidade de ver pessoas e coisas, fazendo com que isso, juntamente com seu interesse pela filosofia e pelo ocultismo, lhe rendesse o título de místico, o que também serviria como arma de 'ataque acadêmico' por parte da classe médica de sua época (p. 10).

Devido a sua realidade familiar desestruturada, Jung cresceu sentindo o peso da solidão, o que o levou a desenvolver uma personalidade com pouco interesse pelas relações sociais. Na época escolar, isso foi bem marcante e seu isolamento o levou a criar suas próprias brincadeiras e fantasias. "Creio que ele ainda não sabia, mas dessa forma apurava seu sentimento de estranha e fascinante obscuridade, a origem do insight ponderado sobre os mistérios da alquimia", reflete Varela (p. 14).

Em 1895, Jung inicia seus estudos de Medicina na Universidade de Basileia. Desde então, passa a defender a tese de que o sujeito deva ser estudado de forma holística, ou seja, em sua íntegra. Assim, desenvolve a ideia do humano como uma totalidade, opondo-se aos métodos em voga na época.

Ao especializar-se em Psiquiatria em 1900, defendeu sua tese de doutorado sobre a Psicologia e a Patologia dos chamados Fenômenos Ocultos. Foi nessa época que, por influência de seu mentor, Eugen Bleuler, monta um laboratório experimental em que testa seu método de associação de palavras.

Durante esse período, leu A Interpretação dos Sonhos (1900) e passou a relacionar sua experiência às ideias de Sigmund Freud, enviando a ele uma cópia de seu livro Estudos Sobre a Associação de Palavras, ato que geraria o início de uma grande e fértil amizade.

A razão da identificação com Freud se deu, como nos conta Ednaldo Varela, uma vez que "Jung dava extrema atenção ao que os pacientes esquizofrênicos diziam e faziam e, com isso, ele demonstrava que os delírios, as alucinações e os gestos dos pacientes tinham muitos significados psicológicos" (p. 22).

Jung mudou-se para Paris e em 1903 casou-se com a suíça Emma Rauschenbach, com quem teve cinco filhos. Em 1904, teve um envolvimento amoroso com uma de suas pacientes, Sabina Spielrein, o que acarretou a Jung muitos conflitos morais e religiosos. Essa, todavia, não foi a única polêmica em que se envolveu Jung. Dentre as mais conhecidas estão uma acusação de ser simpatizante do nazismo e sua indigesta passagem à frente da IPA - Associação Psicanalítica Internacional.

Carl Gustav Jung faleceu em 6 de junho de 1961, com a idade de 85 anos, em Zurique e foi sepultado na Suíça.


A relação entre Carl Jung e Sigmund Freud

Como dito anteriormente, foi através de uma correspondência que tudo começou. Ao enviar uma cópia de seu livro a Freud, esse enxerga uma oportunidade de levar a Psicanálise para além dos muros judeus.

Após trocarem muitas cartas, em 1907 Jung decide viajar para encontrar seu novo amigo, em Viena. Sobre essa experiência, Varela nos conta que "Jung encontrou em Freud um homem mais velho e experiente, que representava de certa forma ter mais coragem intelectual do que seu próprio pai" (p. 30). Do encontro floresceria uma amizade ainda mais íntima que duraria aproximadamente sete anos.

Foi a partir dessa intimidade que um novo sentimento surgiria: o sentimento paternal. Freud passou a ver Jung como filho, e pelas experiências profícuas no campo da Psicanálise pelas quais passaram juntos, Freud decide nomeá-lo como o Príncipe Herdeiro, capaz de substituí-lo no movimento de expansão da teoria psicanalítica.

De todo o tempo em que mantiveram contato, produziram muitas análises sobre sonhos e discutiram diversos casos clínicos. O resultado foi um legado preciosíssimo, tanto para a Medicina como para a Psicanálise.

Entretanto, como é natural entre os estudiosos apaixonados por seus ofícios, ambos discordavam de muitas ideias.

A principal divergência entre eles reside no campo da sexualidade. A teoria da libido proposta por Freud tinha caráter sexual e impulsionava a motivação humana. 

Segundo nos esclarecem Kucek e Pedreira (2015),

Freud explica a libido como tensão sexual acumulada, ou seja, a considera como impulso da pulsão sexual. Ele também busca nas ciências naturais explicações para fenômenos de ordem psíquica.

Para Jung, a libido era entendida num aspecto mais amplo, tal qual uma força de vida e julgava a tese de Freud como sendo reducionista e estreita.

Além dessa divergência teórica, para Freud era inconcebível a inclinação de Jung aos fenômenos espirituais. Por usa vez, Jung acreditava que poderia haver uma camada mais profunda daquela formulada por Freud sobre o inconsciente pessoal, e mesmo tendo visões bastante divergentes, Freud o indica como presidente da IPA - Associação Psicanalítica Internacional.

Como nos contam Kucek e Pedreira (2015),

Freud mantém uma atitude persuasiva e intolerante em relação às mudanças propostas por Jung em seus estudos. É justamente isso que leva a sua separação, (...). Freud via em Jung o sucessor para a psicanálise, e suas divergências fizeram com que Freud relutasse e resolvesse cortar relações com Jung. Ambos continuaram se correspondendo apenas para assuntos acadêmicos e institucionais.

Apesar da distância já consumada entre Freud e Jung, o rompimento definitivo entre ambos se deu por um fato mais pontual. Em 1914, Jung se demite da IPA após sua apresentação desastrosa no Congresso de Munique. A partir de então, nunca mais se viram ou mesmo trocaram correspondência e Jung seguiu seu caminho, com o fortalecimento de suas teorias e com a criação da Psicologia Analítica.


A obra e a contribuição de Jung para a Psicanálise

Carl Gustav Jung representa para a Psicanálise a busca pela psiqué individual e a totalidade do indivíduo, num caráter amplo e holístico. Seu modo de pensar eleva o indivíduo ao nível de ser único que não pode ser enquadrado em nenhuma teoria científica. Dentre suas maiores contribuições para as áreas psicológicas estão os fundamentos da Psicologia Analítica.

A Psicologia Analítica, também conhecida como Psicologia Junguiana ou Psicologia Complexa, nasce das próprias experiências de Jung e se configura como um trabalho denso e essencial para a compreensão da mente humana. Alguns conceitos nos permitem perceber, mesmo que de forma concisa, suas principais ideias:

O Inconsciente Coletivo, como nos ensina a professora e psicóloga Ana Lúcia Santana, diferencia-se já no próprio nome do universo desvendado por Freud - visto como um depósito mnemônico e de pulsões reprimidas -, significando um sistema herdado por cada geração, dinâmico e pulsante, incessantemente ativo. O inconsciente junguiano não pode ser meramente descrito como um conjunto de memórias legadas pelos ancestrais, mas sim de tendências inatas para a disposição da psique.

O Inconsciente Individual representa, ainda nas palavras da professora, os "elementos que, desconectados da consciência, refugiam-se no inconsciente, mas continuam a exercer influência sobre o comportamento humano, tanto negativa quanto positiva, ao incentivar o exercício do potencial criativo do ser".

Citando uma vez mais a psicóloga, os arquétipos, na teoria Junguiana, são justamente os automatismos desenvolvidos pela psique, estes traços do Inconsciente Coletivo. Cada um deles corresponde a uma circunstância apresentada pela vida, recepcionada pela mente como um desafio a ser conquistado e transformado em conhecimento, através da repetição exaustiva da experiência, então automatizada em nossa organização psíquica, no início mais como disposição formal do que como conteúdo, simbolizando tão somente possibilidades, dentre as quais o homem posteriormente escolherá a que se tornará real.

Além dos conceitos mencionados referentes à Psicologia Analítica, e embora não tenha sido consumado o principado de Jung como fora um dia desejado por Freud, Jung deixa para a Psicanálise um vasto legado de contribuições.

A religião, tida para Freud como uma ilusão tal qual se percebe pela leitura de obras como Totem e Tabu (1913) e O Mal-Estar na Civilização (1929), é entendida por Jung sob outro prisma. Para ele, a religião é considerada "como algo importante para as experiências e para o crescimento humano" (Varela: 2016, p. 69). Além desse ponto de contraste com as ideias freudianas, Jung concebia o uso de mandalas (círculos, em sânscrito) como técnica na qual o indivíduo tem a oportunidade de interpretar de forma significativa as imagens presentes, por refletirem uma camada mais profunda do inconsciente humano.

Ainda em relação àquilo acrescentado por Jung para o aprofundamento da compreensão da mente humana, estão as noções de personalidades extrovertidas e introvertidas. Em suma, "pessoas extrovertidas encarregam-se da iniciativa, da ação prática; e as introvertidas encarregam-se da reflexão" (Varela: 2016, p. 80).


Considerações finais

Para concluirmos nossa breve tentativa de apresentar Jung, sua vida e contribuições psicanalíticas, devemos mencionar o vigor e empenho com que, tanto na pesquisa como na prática clínica, esse expoente das ciências psicológicas muito se esforçou no intuito de manter seu fio condutor em direção à descoberta do ser humano dentro de si mesmo.

Assim, finalizando ainda com as palavras de Ednaldo Varela, Jung era também um pensador das ciências humanas, e isso faz com que muitos dos seus seguidores não deem importância ao fato de ele ter exercido um cargo de confiança em um ambiente nazista que perseguia os psicólogos judeus e não nazistas, como seu ex-tutor, Sigmund Freud e tantos outros que lutavam pela sua liberdade de ir e vir, trabalhando para permanecerem vivos nessa época tão obscura. Essa postura adotada por ele estava diretamente ligada à forma como ele enxergava o mundo à sua vota (2016, p.172).


Evandro Carlos Braggio

18 de Setembro de 2018


REFERÊNCIAS:

KUCEK, E; PEDREIRA, R. F. Relatório: A Relação entre Freud e Jung. Disponível em:<https://www.vitrineacademica.dombosco.sebsa.com.br/index.php/vitrine/article/viewFile/424/432>. Acesso em 17 de Setembro de 2018.

SANTANA, A. L. Psicologia Analítica. Disponível em <https://www.infoescola.com/psicologia/psicologia-analitica>. Acesso em 17 de setembro de 2018.

VARELA, E. Carl Gustav Jung. In: O Essencial da Psicologia. Vol. II. São Paulo: Hunter Books, 2016.