É TEMPO DE MUDAR!

23/03/2022 10:46

Relato de um Caso Clínico 


A jovem Brunella (nome fictício) veio em busca do atendimento psicanalítico em janeiro de 2019 com a reclamatória de que sentia-se muito ansiosa em diversas situações de sua vida cotidiana, o que lhe causava bastante angústia e desconforto.

O que fazia a bela jovem sentir-se assim? Quais conteúdos latentes jaziam por trás de tais sintomas manifestos?


1 - História da paciente

Carioca de origem mas vivendo em terras capixabas há pouco tempo, nossa paciente de 21 anos relata uma infância bastante comum do ponto de vista social. Filha de pais muito religiosos, absorveu deles uma severidade bastante acentuada desde tenra infância. Era preciso, segundo os rígidos padrões paternos, alcançar um nível de responsabilidade e retidão que a tornava uma espécie de modelo de filha ideal e perfeita.

A rotina diária de Brunella não variava muito: a escola e seus deveres de casa, a igreja com suas incumbências, as tarefas do lar cada vez mais extensas e a responsabilidade extra de cuidar do irmão mais novo faziam parte de seu universo particular.

No complexo familiar da jovem havia, entretanto, alguns elementos que poderão lançar alguma luz sobre a forma como ela se estruturou como pessoa.

Rodeada pelos embates conflituosos de seus pais, Brunella nunca podia errar. Dela era sempre exigido um nível máximo de perfeição, sem a possibilidade de justificativas. Agressões verbais e físicas por parte de seu pai eram uma constante em sua vida. Além disso, ela não podia exercer sua liberdade optativa em relação a quase nada - tudo era dito e determinado por ele, com o qual mantinha uma relação de rivalidade e humilhação constantes.

Os breves relatos de Brunella em relação a sua mãe nos fazem perceber o quão apática e negligente era sua atitude. Do que consegue relatar, sua mãe mantinha uma posição absolutamente passiva, o que despertava na paciente sentimentos de comiseração e tristeza.

Com o tempo, Brunella começa a perceber que sua orientação sexual se inclinava para as meninas com as quais mantinha contato. Nessa época, devido seu enclausuramento psíquico, adoece. Uma depressão toma conta de sua vida e a faz desenvolver uma espécie de "atitude ansiosa" (palavras da paciente) em relação ao mundo. Episódios fóbicos, crises nervosas, sudorese intensa nas mãos e fortes dores de cabeça foram alguns relatos da paciente.

Envolvida num relacionamento virtual, a jovem decide romper esse enclausuramento. Chama os pais para uma conversa na qual expõe sua sexualidade e comunica sua mudança para Vitória, capital do Espirito Santo.

Brunella sai de casa e deixa para trás não apenas sua casa e família. Sua atitude libertária acaba por provocar a desautorização de seu pai e um distanciamento penoso de sua mãe. Tudo isso em prol de uma nova vida em que, segundo ela, seria o início de sua felicidade.

Agora em solo capixaba, nossa paciente experimenta o ônus e o bônus de suas decisões. O relacionamento chega ao fim em pouco tempo, mas já está bastante adaptada à realidade da nova cidade. O curso de graduação se encaminha para o final e um novo relacionamento se desenrola. Entretanto, o que não parece ter fim, ao contrário parece atingir cada vez mais uma dimensão incontrolável, são suas crises ansiosas. Tais crises conduz Brunella a diversas situações conflituosas nos mais variados âmbitos sociais. É chegada a hora de pedir ajuda.


2 - Registro cronológico do atendimento

Primeiro encontro: acolhimento e anamnese da paciente. Brunella se queixa dos momentos de ansiedade cada vez mais recorrentes, o que acarreta muitos transtornos nas relações sociais.

Segundo encontro: conta partes de sua infância e como foi influenciada pelo pai a ser tão perfeita e competente. Relata muita angústia e como se cobra muito em tudo o que faz. 

Terceiro encontro: a paciente relata dificuldades de comunicar seus sentimentos. Se sente presa em si. Reflete e chega ao ponto de reconhecer a projeção que faz da figura paterna nas pessoas como forma de seguir o modelo de perfeição proposto por ele.

Quarto encontro: Brunella percebe que assimila o problema dos outros de forma impulsiva e, assim, abafa os seus.

Quinto encontro: a jovem percebe que sua insatisfação sexual de certa forma se conecta ao insucesso em outras áreas. Segundo ela, sua parceira a tenta controlar como fazia seu pai e isso a frustra.

Sexto encontro: traz para a sessão uma avaliação positiva do acompanhamento psicanalítico que, segundo ela, diminuiu em alguma medida seus episódios ansiosos.

Sétimo encontro: relata alguns sonhos recorrentes, todos relacionados à infância difícil de turbulência familiar.

Oitavo encontro: Faz uma reflexão sobre a submissão como forma de manipulação e se sente angustiada pela cobrança das pessoas em relação a perfeição de seus atos. Tem uma sensação de desamparo e solidão que, segundo ela, pode ser pela recente adaptação ao meio. Apresenta pouca sensação de pertencimento e angústia por situações banais do dia a dia.

Nono encontro: decide romper os paradigmas e tomar decisões que visem a libertação de velhos conceitos. Aumenta a percepção de suas falhas e acertos. Como pontapé inicial, decide romper com o relacionamento atual que mantém com uma menina cerca de cinco anos mais velha que ela.

Décimo encontro: apresenta um declínio de suas cobranças internas. Passa a perceber e considerar seus limites, mas ainda sente alguma culpa por algumas ações e pensamentos.

Décimo primeiro encontro: faz planos mas se angustia com eles pois sente que precisa do aval e da aprovação dos outros. Autocensura projetada pelo modelo repressor do pai.

Décimo segundo encontro: elabora reflexões mais apropriadas ao perceber que precisa abandonar padrões antigos desenvolvidos pela expectativa dos pais e dos outros.

Décimo terceiro encontro: a paciente traz um episódio recente no relacionamento com um amigo. Segundo ela, disse "não" para uma situação que antes diria "sim". Parece demonstrar novas atitudes fruto de uma reflexão mais assertiva de seus modos predefinidos.

Décimo quarto encontro: sente-se triste por não conseguir manter os vínculos afetivos. Ainda não se perdoa pelas falhas e isso a incomoda.

Décimo quinto encontro: sente-se aliviada por perceber que tem se cobrado menos pelos resultados e consegue ampliar a visão de si mesma.

Décimo sexto encontro: Brunella apresenta uma ligeira angústia por acreditar que possa ter tomado algumas atitudes erradas. Entretanto, percebe que faz parte do processo de mudança. Demonstra coragem e determinação. Relata uma diminuição considerável de seus episódios de ansiedade. Segundo ela, tem se preocupado pouco com as exigências internas e externas.

Décimo sétimo encontro: a paciente comunica que irá interromper o tratamento devido a mudança de seu horário de trabalho. Segundo ela, sabe que precisaria de mais um tempo de análise, entretanto sente-se menos ansiosa e percebe que tem projetado menos a figura paterna nas pessoas, o que diminuiu sua necessidade pelo êxito constante em suas tarefas.


3 - Condução do caso

A vida para Brunella tinha um objetivo e se pudéssemos resumi-lo em uma única palavra, essa palavra seria "perfeição". Obviamente esse procedimento padrão, por assim dizer, que se esperava da menina não foi desenvolvido sozinho. Fora forjado pela forma como seu pai a tratava desde muito cedo. Muita rigidez e bastante exigência, somados à uma dose extra de maus tratos, a tornaram uma espécie de protótipo da menina perfeita para atender às demandas da sociedade, principalmente às do grupo religioso no qual a família estava inserida.

No seu ordenamento psíquico, a paciente consegue avançar as fases psicossexuais iniciais sem muitos problemas, chegando ao Complexo de Édipo onde, então, encontra seus verdadeiros desafios: aliar-se à mãe e desistir do amor do pai. Quanto a isso, BERGERET (1988: 101) nos exorta que "a maneira como é vivido o Édipo matiza todas as variedades neuróticas no seio da mesma linhagem". Contudo, pelas vicissitudes dos instintos, em relação à paciente, há uma inversão na medida em que ela se identifica com o pai e orienta sua libido para uma figura feminina.

FREUD (1905: 130) parece confirmar nossa tese ao salientar que "particularmente interessante são os casos em que a libido se altera no sentido da inversão depois de se ter uma experiência penosa com o objeto sexual normal". De fato, parece ser esse o caso em questão, já que Brunella não obteve nessa fase de sua vida uma experiência adequada na tríade mãe-pai-filha. Lhe faltaram justamente os elementos principais: amor, carinho e liberdade.

Sua orientação sexual, então, se ,mantém no campo homoafetivo. Entretanto, é para além de sua orientação sexual que nos propomos investigar.

O período de latência que se seguiu ao Édipo oportunizou uma acomodação dos conteúdos agressivos e traumáticos da paciente de forma a ter no recalcamento seu mecanismo de defesa mais eficiente. A esse respeito, BERGERET salienta que:

Embora outros mecanismos de defesa acessórios possam vir em auxílio deste recalcamento conforme as variedades neuróticas, jamais se apela, contudo, à negação da realidade, mesmo de forma parcial. A realidade pode achar-se transformada pela elaboração defensiva, mas permanece não negada (1988: 101).

Assim, Brunella revive na adolescência as consequências da realidade vivida no período infantil de intensa repressão e desamparo afetivo, o que se manifesta em reações projetivas e numerosos episódios de ansiedade aguda. Sua infância marcada por obrigações excessivas e tarefas a serem desempenhadas sem a mínima possibilidade de falha, fazem por criar na pisque da jovem a imagem simbólica da pessoa perfeita. Por ocasião da adolescência e de sua orientação homoafetiva, ela passa a sentir de forma inconsciente uma frustração por não corresponder às exigências paternas, acarretando sua angústia e a levando ao quadro clínico apresentado.

O ponto de eclosão dos transtornos percebidos na paciente se dá na ocasião em que Brunella esclarece sua orientação sexual perante os pais e rompe com seu contato familiar. Ela, de forma inconsciente, assume uma postura ao mesmo tempo anárquica e incompetente. Sua anarquia diz respeito à busca de seus ideais de ego e suas gratificações libidinais, enquanto sua incompetência se refere à impossibilidade de responder aos projetos de vida estipulados pelos pais. A paciente vive uma relação simbiótica entre sucesso e fracasso. O seu sentimento de culpa é latente. 

A partir daí, para lidar com essa ambiguidade, Brunella passa então a projetar nas outras pessoas a figura do pai. Aquela figura forte, incisiva e que ainda exerce um enorme poder inconsciente. Ao projetar nas pessoas o imago paterno, a jovem busca a tranquilização por meio de atitudes que venham a compensar a frustração inconsciente, o que causa imensa ansiedade nas relações de estudo, trabalho e de cunho sentimental. Como não atendeu às ordens do "papai", ela precisa atender às ordens das pessoas, tentando agir de forma perfeita e irrepreensível.

Para entendermos melhor o mecanismo da projeção, buscamos em LAPLANCHE E PONTALIS (1991: 375) uma definição bastante esclarecedora. Segundo os autores, na projeção "o sujeito mostra pelas sua atitude que assimila determinada pessoa a outra: diz-se então, por exemplo, que ele 'projeta' a imagem do pai sobre o patrão".

Nessa perspectiva, se inicia um ciclo de angústia e ansiedade. Todas as vezes que Brunella precisa desempenhar alguma tarefa simples ou complexa, importante ou banal, ela se angustia por temer não conseguir executar a tarefa de forma perfeita, o que desencadeia episódios de ansiedade. Se ela falha, se sente culpada.

No processo de análise psicanalítica, identificamos os elementos inconscientes da paciente e pudemos desvendar toda a problemática envolvendo as situações com seu pai e sua mãe. Aos poucos ela pode reviver tais episódios, muitos deles manifestos em sonhos, e pode refletir sobre a forma com a qual projetava suas angustias. Nesse processo de ressignificação, a paciente retoma os imagos paternos predefinidos e se decide por um novo plano de ação para sua vida.

Brunella se reconcilia com a imagem do pai e entende os motivos pelos quais não pode (nem precisava) corresponder às suas expectativas. Há uma nítida diminuição de sua culpa inconsciente na medida em que trazemos à sua consciência os motivos pelos quais se achava culpada. Ela abandona o desejo de perfeição por entender que é um ser humano e por isso está na eminência de êxitos e fracassos. Além disso, adota uma postura mais conciliatória em relação ao Outro. Ou seja, se permite viver apenas dentro de suas próprias expectativas, deixando o Outro viver as dele. Reconhece que é possível falhar sem perder a dignidade e errar sem ser submetida a uma autopunição. Desiste de acalentar uma culpa que não é sua. 

Com o desenvolvimento do processo de análise, a paciente manifesta sua alegria e diz sentir-se menos ansiosa e com menos expectativas em relação ao outro.

Infelizmente, um acontecimento ocasiona a interrupção do processo. É necessário que a paciente redimensione seu horário de trabalho, impedindo assim a continuação do tratamento.

Em sua última sessão, no entanto, Brunella manifesta seu agradecimento e também afirma que a análise psicanalítica a fez ter uma consciência maior de si mesma e perceber que seus episódios de angústia e ansiedade praticamente não são mais notados.


 4 - Considerações finais

O caso da paciente Brunella foi particularmente interessante e instrutivo. De alguma forma, faz-nos lançar um olhar mais atento à questão da primeira infância e de como as situações vividas nesse período da vida podem dar ensejo a diversas complicações nas demais fases da vida.

Brunella não foi a primeira ( e, por certo, não será a única) a ser submetida aos maus tratos e, muitas vezes, a tirania dos adultos. Vivemos numa sociedade em que o amor e o carinho por nossas crianças estão cada vez mais em declínio e ausentes em nossos lares.

Felizmente, Brunella pode buscar ajuda, mesmo em sua atual fase adulta. Pode se apoiar em alguém que a conduziu rumo a seu verdadeiro self. Nesse percurso houve lágrimas, mas houve paz. Quantas pessoas não terão a mesma oportunidade?


Evandro Carlos Braggio


Referências:

BERGERET, J. Personalidade Normal e Patológica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.

FREUD, S. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. VII, 1996.

LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991.