BELEZAS DO CAMINHO: UM NOVO OLHAR SOBRE A VIDA

22/03/2022 21:59

Relato de um Caso Clínico 


Recebi em 2019 um jovem de 39 anos que, pelo uso prolongado de maconha e cocaína, perdera emprego, dignidade e sentido para a vida. Do quadro que se apresentava como uma adição ao uso de drogas ilícitas, o manejo analítico propiciou novos olhares frente a vida e suas inúmeras perspectivas.


1 - História do paciente

Paulo, morador da Região Metropolitana de Vitoria-ES, relata que sua infância foi saudável e que sempre manteve um relacionamento harmonioso com a família. Filho mais novo de um total de dois filhos (ambos do sexo masculino), sempre encarou a vida de forma otimista e acalentava muitos sonhos e planos para o futuro. Seus pais são, segundo suas palavras, "pessoas boas e de caráter" que o ensinou valores éticos e morais segundo os conceitos que acreditavam serem corretos.

Em sua adolescência, sentia um prazer especial pela música, o que o levou a interessar-se por aprender um instrumento musical - o violão. Através dessa experiência, obteve acesso à música Norte Americana, mais especificamente as performances do cantor, compositor e guitarrista Jimi Hendrix. Tal identificação, entretanto, extrapolou o âmbito musical e o conduziu a ser fã do estilo de vida e ideologias do músico. Na mesma época, sofreu a perda de seu querido irmão que fora vítima de um terrível acidente automobilístico.

Nesse interim, por volta dos 16 anos de idade, conheceu a maconha e passou a fazer o uso recreativo da erva pois, segundo ele, era algo que "sentia muita tranquilidade" e conseguia controlar a frequência de seu uso.

Assim, os anos se passaram na maior normalidade possível. Após a conclusão do Ensino Médio, foi aprovado no vestibular para Engenharia Civil, o que concluiu com êxito. Anos depois, casou-se e sentia que estava em plena realização.

A partir daí, uma sequência de fatos conduziu Paulo a situação apresentada no início do tratamento psicanalítico: sua desmotivação para encarar os fatos da vida o levou a buscar outras formas de prazer, o que ele faz na descoberta e uso da cocaína.

Devido a dependência e do uso cada vez mais intenso da droga, Paulo passa a ter dificuldades em cumprir com suas atribuições no trabalho e, pela orientação e ajuda da família, é internado numa clínica de recuperação onde ficou por seis meses.

Após ser conduzido novamente ao convívio social, teve muitas recaídas. Outras internações foram necessárias, mas seu emprego já havia sido comprometido.

Paulo nos conta que, mesmo sendo um usuário constante de cocaína, nunca foi abandonado por sua esposa. Ela, pedagoga escolar, tem mantido o sustento da família e o apoiado na busca pela superação de seu vício, o que o motivou a buscar um tratamento psicanalítico.


2 - Registro cronológico do atendimento

Primeiro encontro: acolhimento e anamnese do paciente. Relata o intenso uso de cocaína e menciona situações em que se percebe paranóico devido às alucinações constantes e pela obsessão em acreditar que sua esposa o trai. Sente-se angustiado pela perda do emprego e do casamento conturbado.

 Segundo encontro: o paciente conta aspectos de sua infância e relembra alguns fatos que o fazem refletir sobre a relação de desejo pelo uso de drogas. Reflete sobre a admiração que nutria pelo irmão.

Terceiro encontro: descreve o trauma que sofreu pela perda do irmão e conclui que não vale a pena esforçar-se por viver já que "todos morrem no final".

Quarto encontro: destaca suas internações e o transtorno que tem causado a sua esposa e seus pais. Concatena o uso de drogas à morte do irmão e se emociona. Conclui que passou a viver uma vida sem sentido por negar a realidade em prol de prazeres efêmeros.

Quinto encontro: percebe que a filosofia de vida que criou é contraproducente e totalmente inócua. Pede ajuda para elaborar um currículo com o intuito de submetê-lo a um vaga de emprego recém percebida em um jornal de circulação local.

Sexto encontro: demonstra interesse por retomar seu trabalho e resgatar sua dignidade de vida através de novas perspectivas.

Sétimo encontro: comunica que foi contratado pela empresa e que, por tal motivo, não poderá continuar o acompanhamento psicanalítico.


3 - Condução do caso

O paciente chegou ao primeiro dia de análise com vontade de falar. Verborrágico e desinibido, não conseguia, contudo, esconder sua ansiedade frente ao analista.

Tudo ocorreu conforme o esperado para ambos. De tudo o que havíamos dialogado e com base em todas as reflexões iniciais, tanto minhas quanto as do paciente, várias foram as dúvidas e um universo de insegurança se formou. Onde estaria o cerne da questão - o trauma de Paulo? Qual a falta do sujeito que o levou a dependência biopsicossocial? Como ajudá-lo a superar esse trauma e a abandonar seu vicio?

Fim de sessão. Paciente e analista se despedem com o compromisso de um novo encontro.

A supervisão do caso trouxe algo bastante significativo e que iria fazer diferença em todo o processo me foi esclarecido. Segundo meu supervisor, o grande equívoco por parte de um número expressivo de psicanalistas é acreditar que a análise tem o objetivo ou incumbência de retirar a dependência química de pacientes drogatizados. A psicanálise, através do manejo adequado do analista, procura refletir no sujeito analisado a consciência de sua falta. Ou seja, aquilo de que o paciente de fato precisa é (re)conhecer o que lhe falta e, a partir daí, decidir pela continuidade ou não do uso de substâncias psicotrópicas ou de qualquer outro substituto.

Juntos novamente, Paulo e eu buscamos investigar suas memórias mais primitivas e encontramos o fato desencadeador de sua condição. Seu irmão, mais velho cerca de cinco anos, era para ele um exemplo de responsabilidade e educação.

Conta ele que admirava seu irmão com mais intensidade que seu próprio pai, embora também o amasse e respeitasse. Entretanto, a intelectualidade do irmão e sua reputação ilibada o fazia admirar e contribuía para que ele próprio também assim almejasse ser. Era para ele uma espécie de modelo e o tinha como um amigo mais chegado.

A morte do irmão foi para ele "um divisor de águas". Um luto intenso se abateu sobre toda a família que precisou se unir para superar essa perda drástica. Paulo, entretanto, percebeu e sentiu o fato de outra maneira. "Por que me esforçar tanto para conseguir dinheiro e uma vida boa se morreremos no final assim como meu querido irmão?" Essa passou a ser a frase-registro que iria servir de base para a construção de uma filosofia de vida em busca dos prazeres carnais.

Paulo, então, nega seu trauma e o recalca. Imediatamente, liga-se às experiências prazerosas oriundas do uso da maconha e, em seguida, conhece a cocaína. Essa nova substância, usada inicialmente como "recreação", passa a ser usada em larga escala, trazendo como consequência os desdobramentos anteriormente narrados e levando nosso paciente a se afastar de sua realidade e viver sob o princípio do prazer.

A teoria psicanalítica, por intermédio dos escritos de Sigmund Freud, nos ensina que:

O principio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte do aparelho mental, mas que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. Esse último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. Contudo, o princípio de prazer persiste por longo tempo como o método de funcionamento empregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de 'educar', e, partindo desses instintos, ou do próprio ego, com frequência consegue vencer o princípio da realidade, em detrimento do organismo como um todo (1920: 20).

Como, então, poderíamos reverter o quadro clínico do paciente? Como, no caso de Paulo, fazê-lo encarar a realidade de forma a perceber que, mesmo que estejamos naturalmente fadados a morrer um dia, a vida pode ser vivida em sua plenitude? Como desconstruir a filosofia de Paulo baseada em sua negação do trauma?

As supervisões do caso continuaram trazendo para mim grande material teórico e prático e o manejo de análise que vinha adotando com o paciente proporcionou, em certo âmbito, um fortalecimento do seu verdadeiro self. Entretanto, foi durante um momento singular que o manejo parece ter sido mais adequado e significativo.

Após o paciente declarar que "a vida não tem sentido, pois todos nos ferramos no final", relatei-lhe o seguinte diálogo que tive com um amigo e que passo a transcrever:


Amigo: Evandro, estive em Morretes-PR na semana passada.

Eu: Sério!? Que legal! E como foi?

Amigo: Eu gostei da cidade. Pegamos o trem em Curitiba de manhã e chegamos lá ao meio dia.

Eu: Que ótimo! Eu fiz esse passeio umas três vezes, pelo que me lembro. Você gostou de ver a represa?

Amigo: Tinha represa? Não me lembro...

Eu: Então, o que achou da Garganta do Diabo?

Amigo: Credo! Tem isso lá?

Eu: Sim! É uma depressão rochosa na Serra do Mar que vemos durante o passeio de trem até Morretes. Aliás, o trajeto todo é lindo. Tem uma casa antiga em ruínas que representa bem a época. Você viu?

Amigo: Não, não vi.

Eu: Meu amigo, você tem certeza de que estamos falando do mesmo lugar?...


Após o relato desse diálogo que estabeleci com meu amigo desatencioso, eu e Paulo pudemos refletir sobre o que chamei de belezas do caminho. Nem sempre o que mais importa deve ser o nosso destino, ou seja, o fim de nossa viagem. Tudo aquilo que saboreamos no decorrer do nosso caminho, experiências agradáveis e dissabores, devem ser absorvidos como parte integrante de um momento único e singular.

Alguns dias se passaram e o paciente, de volta à análise, demonstrou certo interesse por assuntos e situações cotidianas outrora esquecidas. Enfatizou seu vício como algo a ser dominado num futuro. Por enquanto, não se sente forte o bastante para abandoná-lo, afirmou ele. Entretanto, fez um pedido inusitado. Paulo, desempregado já há algum tempo, pede ajuda para elaboração de um currículo que, pelo interesse num anúncio de jornal, enxerga a possibilidade de uma recolocação no mercado de trabalho.

Não sabíamos, mas esse seria nosso penúltimo encontro. Com o recrutamento pela empresa a qual submetera o currículo, Paulo comunica a interrupção do acompanhamento psicanalítico. Agradece a ajuda e complementa sua despedida com as palavras: "hoje estou dando um novo sentido para minha vida".


4 - Considerações finais

Embora o relato deste caso tenha se dado de forma bastante concisa, é inegável o entendimento de que a experiência se deu para ambos deforma bastante significativa. Entre erros e acertos, trilhamos um caminho baseado no diálogo, no comprometimento e na confiança mútua.

O processo analítico, contudo, trouxe surpresas bastante expressivas. A reclamatória inicial do paciente foi substituída pela compreensão de que sempre há algo maior latente por detrás de seu conteúdo manifesto e que, no caso de Paulo, pode ser revelado num tempo consideravelmente curto.

Com a interrupção do processo, algumas dúvidas e questões ainda permanecem. Dentre elas, uma apenas merece menção: com a conquista de seu novo emprego e na eminência de novas possibilidades, estará o paciente pronto para renunciar seu vício e encarar sua vida real? 

Entretanto, somente Paulo, e tão somente ele, poderá nos dar tal resposta.


Referências: 

FREUD, S. Além do Princípio de Prazer. Vol. XVIII das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.