A SUBLIMAÇÃO NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

22/03/2022 21:48


1 INTRODUÇÂO

A vida cotidiana e os saberes oralmente compartilhados moldaram, ao longo do tempo, o termo sublimação no âmbito de, pelo menos, três áreas distintas. No que se refere à Química, a sublimação é entendida como a transformação da matéria do estado sólido diretamente para o gasoso. Em relação a Moral, o termo se refere a algo que pode ser elevado à perfeição. Sublimar significa, por assim dizer, tornar-se "sublime".

Em Psicanálise, entendemos sublimação como sendo um dos destinos da pulsão e, em síntese, consiste no processo de desvio das forças pulsionais sexuais para um alvo não sexual. Para exemplificarmos, podemos citar a sublimação pela música, dança, esporte, literatura ou outra de cunho socialmente produtivo e valorizado.

Pertencente ao grupo dos Mecanismos de Defesa, a sublimação é classificada como "defesa bem sucedida, que gera a cessão daquilo que se rejeita" (FENICHEL, 1998, p.131) e passa por um processo de dessexualização que a torna capaz de substituir a meta sexual original por novas metas.

Partindo dessas premissas, diferentes autores contribuíram, cada um a seu tempo e modo, com o conceito de sublimação de forma a inseri-la no contexto do inconsciente humano.

Procuraremos sintetizar a evolução do conceito de sublimação nas perspectivas dos autores pesquisados, bem como compreendê-la no âmbito psicanalítico dos Mecanismos de Defesa.


2 OS MECANISMOS DE DEFESA E A SUBLIMAÇÃO

A inauguração do termo Mecanismos de Defesa foi feita por Sigmund Freud em dois momentos singulares. O conceito de defesa foi esboçado em sua Comunicação Preliminar de 1893 (FREUD, 1996), entretanto, foi somente em As Neuropsicoses de Defesa de 1894 (FREUD, 1996) que ele usa o termo pela primeira vez. Como explicam Laplanche e Pontalis (1991, p.278) na obra Vocabulário da Psicanálise,

[...] o termo mecanismo estará presente de maneira esporádica ao longo de toda a obra. A expressão "mecanismo de defesa" aparece, por exemplo, nos escritos metapsicológicos de 1915, e em duas acepções um pouco diferentes: quer para designar o conjunto do processo defensivo característico de determinada neurose, quer para exprimir a utilização defensiva deste ou daquele "destino pulsional" [...].

Assim, de forma sintetizada, os Mecanismos de Defesa constituem um grupo de processos inconscientes que possuem a mesma finalidade: proteger o Ego contra as exigências pulsionais.

Após ter ampliado o conceito tanto para as situações normais quanto as patológicas, Freud descreveu a repressão, a negação, a racionalização, o isolamento, a formação reativa, a projeção, a regressão e a sublimação como sendo os principais mecanismos inconscientes pelos quais o Ego reage aos impulsos ou afetos percebidos como prejudiciais ou perigosos.

Tomando o processo de sublimação como foco de nossa pesquisa, encontramos em Otto Fenichel (1998, p.133) uma ponderação bastante esclarecedora. Segundo ele, não são necessariamente patológicos os conflitos entre as exigências instintivas e o medo ou o sentimento de culpa. O que determina se o curso ulterior vai ser normal ou patológico é a maneira pela qual se manipulam os conflitos.

Assim, percebemos a sublimação como sendo um mecanismo de defesa altamente saudável na medida em que

[...] o sujeito desagressiva a energia agressiva ou dessexualiza a libido, transformando-a em algo socialmente aceito. A energia perde seu caráter, ou seja, a energia inerente a impulsos primitivos ou inaceitáveis é transformada e dirigida a objetos sociais úteis (SILVA: 2010, p. 2).

Nesse sentido, Freud aborda o conceito de sublimação em seu texto Leonardo da Vinci e Uma Lembrança de Sua Infância (1910). Nele, Freud pontua que recalque e sublimação, embora sejam processos de defesa do Ego, constituem dois mecanismos bastante heterogêneos. Enquanto o recalque procura conter os impulsos pulsionais, a sublimação propicia uma espécie de "fuga" desse impulso causando a satisfação. O texto mencionado procura trabalhar a questão da curiosidade que o infante tem sobre sua sexualidade, reorganizando-a em prol do conhecimento. Desse modo, Leonardo sublima seus impulsos sexuais e os direciona a arte e pesquisas, tornando a sublimação uma válvula de escape em favor de seu poder inventivo e criativo.

Vejamos como o conceito de sublimação se desenvolveu nas obras de Freud e como obteve acréscimos significativos por parte de outros autores da Psicanálise.


3 SUBLIMAÇÃO: UM TERMO, DIVERSOS CONCEITOS

Para iniciarmos a compreensão do conceito de sublimação em Freud é necessário dizer, antes de tudo, que ele nunca chegou a escrever nada a respeito de forma separada, um esboço ou um artigo, por exemplo. Entretanto, um estudo biográfico realizado por Ernest Jones (1979) sobre as obras de Freud menciona um artigo escrito por ele e que havia se perdido. Tal artigo iria ser incluído em sua obra Metapsicologia de 1915.

A terminologia utilizada por Freud procura nomear um processo que explica as "atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual" (LAPLANCHE & PONTALIS, 1991, p. 495).

Uma investigação minuciosa da trajetória do conceito de sublimação nos leva, indubitavelmente, à primeira referência ao termo numa carta de Freud a Fliess datada de 1897, como nos esclarece Masson (1986). Na ocasião, o termo estava ligado ao campo da sexualidade e a ideia de sublimação tem como objetivo a defesa contra o sexual. Um pouco depois, quando Freud relatou o Caso Dora (1905), ele afirma ser impossível tratar um caso de histeria sem falar de assuntos sexuais. Assim, percebemos que a palavra sublimação já está contida na força de contenção das exigências eróticas, transformando-a em energia para as realizações culturais.

Quando Freud escreveu o primeiro dos Três Ensaios sobre a Sexualidade (1905), ele utiliza o termo sublimação abordando a relação entre o tocar e o olhar. Nesse contexto, segundo ele, ao desviar o olhar do corpo para o que lhe cobre, ou seja, a roupa, o sujeito acaba por desviar sua libido em direção à arte, numa forma inconsciente de negar o erótico. 

Ainda sobre os Ensaios, Freud fala explicitamente que o processo de sublimação é o resultado de um método inconsciente que tem como meta o desvio das forças pulsionais sexuais para novos objetos. Ele descreve esse método explicando que os impulsos sexuais, por derivarem de zonas sexuais perversas, despertam sentimentos desagradáveis, que produzem forças psíquicas opostas. Trata-se de impulsos reativos que, "a fim de suprimirem esse desprazer, constroem barreiras mentais da repugnância, da vergonha e da imoralidade" (FREUD, 1905, p. 167). Entendemos, então, que na sublimação, o sujeito deixa a satisfação direta e lida com ela na sua dimensão de alvos possíveis.

Nessa perspectiva evolutiva do conceito de sublimação desenvolvido por Freud, é apenas em 1908 em Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna que ele caracteriza seus fundamentos ao estabelecer que a sublimação se refere à inscrição do pulsional no registro da Cultura, fazendo-se pela via da dessexualização.

Outro expoente da Psicanálise acrescenta pontos bastante significativos para a compreensão do conceito de sublimação.

Jacques Lacan (1988) entende que a sublimação resulta na elevação do objeto à dignidade da Coisa. Lacan buscou a noção de Coisa (das Ding) no texto freudiano do Projeto de uma psicologia (Freud, 1995). Assim, Das ding se refere ao objeto proibido que tem a mãe como seu representante. Tal objeto deve ser mantido à distância, tornando-o ausente para que o desejo possa se constituir (LACAN, 1988). Segundo a teoria lacaniana, o vazio da Coisa encontra-se presente em todo objeto sexual, entretanto, subentendido. Tal vazio pertence ao humano, pois é inerente à própria natureza da estrutura sexual humana. Como a sublimação é um ato em vias de produção, daí vem sua possibilidade de ser causa da criação e não se ligar ao que já foi criado. Ela trás a dimensão do novo e da transformação.

Uma breve comparação a título didático, podemos dizer que, para Lacan, o objeto deve ter toda a consideração, enquanto, para Freud, a pulsão merece o status de importância.

Assim, tentando sintetizar o termo em Lacan, podemos dizer que a sublimação permite ao sujeito, mesmo que de uma forma temporária, distanciar-se de sua identificação fálica, pelo processo de elevação do objeto ao status de Coisa, e ir ao encontro de sua liberdade. Nessa libertação, o sujeito recobra a sua dignidade do vazio e alcança a sublimação.

Otto Fenichel, em sua obra Teoria Psicanalítica das Neuroses (1998) parece retomar o conceito de Freud sobre o tema, acrescentando algumas elucidações bastante significativas.

Segundo o psicanalista vienense, a sublimação é uma defesa bem sucedida. Contudo, esse mecanismo de defesa difere de outros, pois:

[...] os impulsos sublimados descarregam-se, se bem que drenados por uma trilha artificial, enquanto os outros não se descarregam. Na sublimação, cessa o impulso original pelo fato de que a receptiva energia é retirada em benefício da catexia do seu substituto. Nas outras defesas, a libido do impulso original é contida por uma contracatexia elevada (p. 131 e 132).

Fenichel acrescenta que a sublimação deve ser entendida diferentemente das gratificações substitutivas, pois enquanto essas são fundamentalmente instintivas, aquela está dessexualizada.

Para além desses esclarecimentos, o autor salienta que o objeto da sublimação são os desejos pré-genitais, pois somente esses podem ser sublimados. Segundo ele:

 [...] é muito pouco provável a existência de sublimação da sexualidade genital adulta; os genitais constituem um aparelho que visa à realização da descarga orgástica plena, isto é, não sublimada. Se estes, porém, tiverem sido reprimidos e se permanecerem no inconsciente, competindo com a primazia genital, não podem ser sublimados. A capacidade de orgasmo genital é que possibilita a sublimação (dessexualização) dos desejos pré-genitais (p. 132).

Por fim, a sublimação é provavelmente o mais útil e construtivo mecanismo de defesa que leva a energia de algo a transformar-se em outros com fins de alívio e prazer.

De volta a Freud, percebemos que ele acreditava que as maiores conquistas da civilização tenham sido feitas devido à sublimação eficaz de nossos impulsos sexuais e agressivos que são originados do Id e depois canalizados pelo Ego, conforme indicado pelo Superego.


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora o conceito de sublimação tenha sido submetido naturalmente a um processo de evolução que se confunde com a própria história da Psicanálise, parece-nos apropriado sublinhar um traço característico desse mecanismo de defesa - sua intimidade com a esfera cultural.

É nesse aspecto que retornamos aos escritos freudianos e nos remetemos a sua noção de sublimação como um mecanismo de grande importância para a organização civilizatória, cujo enfoque foi tão bem abordado em O Mal-Estar na Civilização (1930). Nessa obra, Freud apresenta três mecanismos principais de enfrentamento de situações angustiantes e, dentre eles, está a substituição da realidade pela arte. 

Assim, por dedução, podemos perceber a importância dada por Freud à sublimação por considerá-la

[...] um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada (p. 118).

Por fim, mas sem a pretensão de encerrar qualquer discussão sobre o tema, a sublimação deixa de ser, segundo pode-se inferir da citação acima, apenas mais um mecanismo de defesa. Ela toma a ideia de proteção na medida em que procura atenuar o embate direto com as fantasias sexuais, ou seja, proteger o indivíduo da livre manifestação dos instintos pulsionais, conforme podemos depreender do Caso Dora (FREUD: 1905) e dos Três Ensaios Sobre a Sexualidade (FREUD: 1905).


Evandro Carlos Braggio

01 de Setembro de 2019


REFERÊNCIAS:

FENICHEL, O. Teoria Psicanalítica das Neuroses. São Paulo: Atheneu, 1998.

FREUD, Sigmund. Estudos Sobre a Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. II, 1996.

________________. Primeiras Publicações Psicanalíticas. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. III, 1996.

________________. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. VII, 1996.

________________. Moral Sexual 'Civilizada' e Doença Moderna Nervosa. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX, 1996.

________________. Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XI, 1996.

________________. O Mal-Estar na Civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, 1996.

JONES, E. Vida e Obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

MASSON, J. M. A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. São Paulo: Editora Imago, 1986.

SILVA, E. B. T. Mecanismos de Defesa do Ego. Disponível em: <www.psicologia.pt/artigos/textos/TL0212.pdf>. Acesso em: 18 agosto de 2018.