A HOMOSSEXUALIDADE NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

22/03/2022 21:07

1 A SEMENTE 

Mesmo não estando cônscia das transformações pelas quais iria passar num futuro que se anunciava breve, a sociedade de Viena (Áustria) mantinha seu ritmo de tradições e dogmas forjadas pelo liberalismo que a dominou em 1848 após a ascensão de Francisco José ao trono. Um país cujos habitantes incluíam tanto seus povos originais como tchecos, ioguslavos, sérvios, húngaros e romenos, não poderia deixar de experimentar o preconceito, a xenofobia e o racismo - velhos conhecidos também das sociedades atuais.

Alguns historiadores, especialmente aqueles dedicados ao estudo da origem e evolução da ciência psicanalítica, nos dão conta de um cenário marcado não apenas pela guerra e suas consequências devastadoras, mas, sobretudo, pela efervescência das ciências exatas que contrapunham os antigos catecismos da religião ortodoxa da época.

Dentre as diversas autoridades no assunto, uma em particular vem colaborar com nossa compreensão desse momento importante da História. Segundo Elisabeth Roudinesco,

O ano de 1848 marca uma guinada. Primavera dos povos e das revoluções, primavera do liberalismo e do socialismo, aurora do comunismo. Após anos de guerras, massacres, subjugações e rebeliões, homens com línguas e costumes diferentes reivindicavam a abolição dos antigos regimes monárquicos restaurados nos países onde a epopeia napoleônica havia anteriormente contribuído para as expansões dos ideais de 1789: 'Um espectro ronda a Europa', escreviam Marx e Engels em 1848: o espectro do comunismo. 'Todas as potências da velha Europa uniram-se numa santa aliança para exorcizá-lo' (2014: 15).

Para além das questões inerentes ao capitalismo, a historiadora e psicanalista francesa nos fornece reflexões bastante apropriadas sobre a situação vivida pelos povos judeus na época em pauta. Roudinesco pontua que

O que devia importar para eles era o acesso ao status de sujeito de direito, alforriado da servidão da religião e da influência comunitária. Consequentemente, eram autorizados a praticar, privadamente, o culto de sua predileção. (2014: 17).

Nessa perspectiva de pseudo-liberdade na qual se encontravam os judeus, não demorou muito para que Sigmund Freud, natural de Freiberg (República Tcheca) e morador de Viena desde 1860, fizesse uso de suas possibilidades intelectuais e provocasse uma espécie de intercurso que iria incomodar não apenas a Igreja, mas toda comunidade científica com suas descobertas e teorizações.

Sua primeira contribuição para a literatura científica foi escrita à quatro mãos. Em parceria com seu amigo Josef Breuer, Freud inicia suas investigações do universo psíquico com a obra Estudos sobre a Histeria (1895) na qual apresenta três pontos fundamentais da histeria: os sintomas histéricos faziam sentido; existia um trauma que causara a doença, que tinha ligação com impulsos libidinais que haviam sido reprimidos; a lembrança desse trauma e sua catarse era o caminho para a cura.

Com tal obra, Freud pode, de certa maneira, prever o que estaria destinado a ser, como ele próprio nos comunica ao dizer:

Não cuidem, porém, que seja necessária uma especial cultura médica para acompanhar minha exposição. Caminharemos por algum tempo ao lado dos médicos, mas logo deles nos apartaremos, para seguir, com o Dr. Breuer, uma rota absolutamente original. (FREUD: 1910, 27).

E foi exatamente essa originalidade que possibilitou com que Freud pudesse inaugurar não apenas uma nova ciência, mas um novo modo de compreender os processos mentais, sobretudo aqueles mais profundos e nunca antes explorados.

A importância dessa obra, contudo, não se restringe em ser ela, como muitos historiadores costumam classificar, um marco no surgimento e evolução da Psicanálise. Foi à partir das experiências clínicas com suas pacientes e das investigações realizadas para a elaboração dos Estudos sobre a Histeria que Freud chegou ao que viria a ser o cerne da teoria psicanalítica: a sexualidade.

Como nos esclarece a Dra. em Saúde Social, Taís Bleicher, em seu artigo intitulado Freud e a histeria: do biológico ao social (2007), Freud entendeu que as questões sexuais estavam profundamente intrincadas nas origens das mais diversas neuroses. Se abordar o sexo, cientificamente, parecia a Freud inevitável, para seus colegas de profissão e a sociedade, de forma geral, parecia uma ofensa (p. 4).

Quais seriam, pelo ineditismo de suas descobertas, as implicações desse pensamento de vanguarda erigido pelo pai da Psicanálise e os pontos de atrito de suas primeiras concepções teóricas com a sociedade vienense? 

 

 2 O TABU

Se para Sigmund Freud o simples fato de ser um jovem judeu em busca de um lugar ao sol já era motivo de dificuldades das mais variadas ordens, havia muitas outras razões para que suas primeiras acepções fossem refutadas e combatidas pelos mais variados personagens desse drama a que foi submetido.

Numa primeira tentativa de entendermos os muros com os quais ele se deparou, podemos buscar nas próprias palavras de Freud a compreensão que buscamos. Em sua obra Cinco Lições de Psicanálise (1910), Freud reflete sobre o medo que as pessoas tinham de uma nova ciência e a incapacidade de se permitirem ao que se apresentava como novo, quando declara que:

Do ponto de vista intelectual, devemos levar em conta, julgo eu, que existem especialmente dois obstáculos, dignos de nota, contra a aceitação das ideias psicanaliticas: primeiramente a falta de hábito de contar com o rigoroso determinismo da vida mental, o qual não conhece exceção, e, em segundo lugar, o desconhecimento das singularidades pelas quais os processos mentais inconscientes se diferenciam dos conscientes que nos são familiares (p. 63).

Um pouco depois em suas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (1915), Sigmund Freud volta a refletir sobre aquele que seria o 'tendão de Aquiles' de suas teorias - a contestação. Freud admite que:

A psicanálise revela tantas coisas novas, e, em meio a tudo isso, tantas coisas que contraditam opiniões tradicionais, e tanto fere sentimentos profundamente arraigados, que não pode deixar de provocar contestação (p. 21).

Na mesma obra, Freud lança no oceano da incredulidade científica a razão  das resistências de seus descobrimentos, afirmando que:

A educação que receberam previamente deu uma direção particular ao pensar dos senhores que conduz para longe da psicanálise. Foram formados para encontrar uma base anatômica para as funções do organismo e suas doenças, a fim de explicá-las química e fisicamente e encará-las do ponto de vista biológico. Nenhuma parte do interesse dos senhores, contudo, tem sido dirigida para a vida psíquica, onde, afinal, a realização desse organismo maravilhosamente complexo atinge seu ápice. Por essa razão, as formas psicológicas de pensamento têm permanecido estranha aos senhores (p. 29).

Nossa segunda tentativa de lançarmos alguma luz sobre a questão dos rebuliços causados na sociedade da época pelo aflorar da ciência psicanalítica ganha um novo contorno quando direcionamos nossa narrativa para o prisma da sexualidade.

Freud toca num ponto nevrálgico ao reconhecer a sexualidade como força motriz das afecções de âmbito mental. Nesse sentido, ele afirma que:

Os impulsos instintuais que apenas podem ser descritos como sexuais, tanto no sentido estrito como no sentido mais amplo do termo, desempenham na causação das doenças nervosas e mentais um papel extremamente importante e nunca, até o momento, reconhecido (FREUD: 1915, p. 32).

Ciente dos impactos e da amplitude de suas afirmações, critica a hipocrisia da sociedade e amplia o conceito de sexualidade, até então utilizado quase que exclusivamente para se referir ao coito e às funções reprodutoras:

O conceito de 'sexualidade' e, ao mesmo tempo, de destino sexual, teve, é verdade, de ser ampliado de modo a abranger muitas coisas que não podiam ser classificadas sob a função reprodutora, e isso provocou não pouco alarido num mundo austero, respeitável, ou simplesmente, hipócrita (FREUD: 1920, p. 60). 

Mas foi ao abordar o tema da sexualidade infantil que Freud causou um enorme desconforto nas mentes vienenses e repúdio por parte da Igreja e seus seguidores. Sua obra Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905) trouxe um capítulo inteiro dedicado à questão da sexualidade nos primeiros anos de vida e suas implicações nos anos posteriores dos seres humanos. Nele, em meio aos conceitos e teorizações, não se furta às suas declarações ácidas contra o status quo em voga:

É digno e nota que os autores que se ocupam do esclarecimento das propriedades e reações do indivíduo adulto tenham prestado muito mais atenção à fase pre-histórica, àquela representada pela vida dos antepassados - ou seja, atribuído uma influência muito maior à hereditariedade - do que à outra fase pre-histórica, àquela que se dá na existência individual da pessoa, a saber, a infância (p. 163).

Suas ideias deixam bastante claro o peso de importância que a sexualidade dos seres humanos no período infantil representa para toda a vida do sujeito. Aliás, esse tema é recorrente em diversas outras partes e em toda a sua obra bibliográfica, como podemos verificar nestes dois pequenos trechos extraídos das obras Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (1915) e Cinco Lições de Psicanálise (1910), respectivamente:

O que tenho em mente é a rivalidade no amor, com nítida ênfase no sexo do indivíduo. Quando é ainda uma criança, um filho já começa a desenvolver afeição particular por sua mãe, a quem considera como pertencente a ele; começa a sentir o pai como rival que disputa sua única posse. E da mesma forma uma menininha considera sua mãe como um pessoa que interfere na sua relação afetuosa com o pai e que ocupa uma posição que ela mesma poderia muito bem ocupar. A observação nos mostra a quão precoces anos essas atitudes remontam (1915: 208).

O trabalho de análise necessário para o esclarecimento completo e cura definitiva de um caso mórbido não se detém nos episódios contemporâneos da doença; retrocede sempre, em qualquer hipótese, até  a puberdade e a mais remota infância do doente, para só aí topar as impressões e acontecimentos determinantes da doença ulterior. (...) A criança possui, desde o princípio, o instinto e as atividades sexuais. Ela os traz consigo para o mundo, e deles provêm, através de uma evolução rica de etapas, a chamada sexualidade normal do adulto (1910: 54).

Percebemos na última citação o tom de ironia característico de suas declarações, na medida em que entendemos estar Freud em desacordo com a noção de normalidade da esfera sexual humana até então acalentada pela sociedade da época. Quanto a isso, quais seriam as práticas que subverteriam essa normalidade? Em que medida amplia Freud os alcances de sua teoria sobre a sexualidade humana? E o mais importante para o escopo de nossa pesquisa, como o tema da homossexualidade se insere nesse contexto?



3  O ANTICONVENCIONAL

O tema da homossexualidade, embora por demais delicado, foi explorado por Sigmund Freud de forma enfática e bastante clara. Entretanto, suas ideias e conceitos sobre o assunto foram diluídos em toda sua produção literária no decorrer de sua vida.

Iniciemos nossa linha de pensamento inserindo, de saída, o conceito de identificação. É somente partindo desse ponto que conseguiremos trilhar um caminho rumo à elucidação do que ocorre na esfera homossexual.

A identificação é, segundo LAPLANCHE E PONTALIS (1991: 226), "o processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro".

Em sua obra Além do Princípio de Prazer (1920), Freud revela sua tese sobre o processo e a importância da identificação. Ele acreditava que "a identificação constitui a forma mais primitiva e original do laço emocional" (p. 110) e, como consequência, ela "esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo" (p. 110). Assim, "ela se torna o sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal" (p. 111).

Em outros termos, é preciso haver uma identificação com um outro sujeito para que haja uma escolha de objeto, ou seja, eu me constituo à partir do outro.

Compreendido esse primeiro degrau de nossa escada de pensamento, podemos seguir para o segundo - a bissexualidade.

Para Freud, o ser humano é, essencialmente, um ser bissexual. Em seu artigo  A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher (1920) ele é direto ao afirmar que "a Psicanálise possui uma base comum com a biologia, ao pressupor uma bissexualidade original nos seres humanos (tal como nos animais)" (p. 175). E acrescenta: "uma medida muito considerável de homossexualismo latente ou inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas normais" (p. 174).

Retornando à nossa linha de raciocínio, completaremos nossa compreensão buscando nos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905) a peça chave para nosso quebra-cabeças, a inversão.

Freud inclui o tema da inversão em seu primeiro ensaio denominado As Aberrações Sexuais, explicando que invertido é o sujeito cujo objeto sexual não coincide com o sexo oposto, mas com o sexo semelhante ao seu. Explica que os invertidos podem obedecer a três aspectos diferentes: absolutos (quando seu objeto sexual só pode ser do mesmo sexo), anfígenos (quando seu objeto sexual pode ser tanto do mesmo sexo quanto do sexo oposto) e ocasionais (quando o sujeito lança mão de um objeto sexual idêntico ao seu na falta de um objeto diferente).

Mesmo sem explicar a natureza da inversão, ou seja, se é inata ou adquirida, suas concepções representaram um avanço bastante substancial na compreensão das possibilidades e alcances da sexualidade humana, transgredindo os padrões estabelecidos na época e contribuindo para debates e progressos posteriores. 

Numa nota de rodapé acrescentada em 1910 ao texto original dos Três Ensaios, Freud complementa a compreensão do tema da homossexualidade ao retomar a questão da infância do sujeito e esclarecer que

Em todos os casos investigados, constatamos que os futuros invertidos atravessaram, nos primeiros anos de sua infância, uma fase muito intensa, embora muito breve, de fixação na mulher (em geral, a mãe), apos cuja superação identificaram-se com a mulher e tomaram a si mesmos como objeto sexual, ou seja, a partir do narcisismo buscaram homens jovens e parecidos com sua propria pessoa, a quem eles devem amar tal como a mãe os amou" (p. 137).

Assim, como resumo para o que tentamos estabeler em nossa linha de pensamento, podemos sintetizar a questão da homossexualidade nos termos que se seguem: por intermédio de uma identificação com seu primeiro objeto de amor, alicerçado numa base comum onde a bissexualidade se apresenta como possibilidade para todos ao seres humanos e mediante a inversão do alvo sexual, o ser humano passa a canalizar sua energia libidinal tendo como destino um objeto do mesmo sexo.

Para além do que se poderia esperar como normalidade, ou socialmente aceito, tanto na sociedade vienense da época de Freud, quanto nos dias atuais, é importante salientar que a escolha de objeto sexual teorizada por Sigmund Freud é fruto de processos inconscientes e, portanto, alheia às vontades e escolhas conscientes dos sujeitos conhecidos como homossexuais ou, em termos mais recorrentes do nosso tempo, gays e lésbicas.

Quanto a isso, Freud faz uma espécie de alerta ao afirmar que

Via de regra, o homossexual não é capaz de abandonar o objeto que o abastece de prazer e não se pode convencê-lo de que, se fizesse a mudança, descobriria em outro objeto o prazer a que renunciou (1920: 155).

Além disso, Freud admoesta os psicanalistas e os adverte para que não sigam um caminho terapêutico inadequado ao pontuar que:

Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até às disposições instintuais. Aqui o seu trabalho termina e ela deixa o restante à pesquisa biológica (...). (1920: 174).

Quanto a isso, o que podemos abstrair dos relatos de casos deixados por Freud e demais artigos escritos por ele cuja homossexualidade teve seus mecanismos psíquicos revelados?


4 SCHREBER E DA VINCI 

A obra literária de Sigmund Freud é repleta de relatos de casos clínicos por ele tratados, bem como outros artigos que estabelecem pontos de contato com o tema da homossexualidade.

Em dois textos, especificamente, o assunto é explorado de forma a investigar profunda e sistematicamente os traços homossexuais presentes em seus personagens e levantar uma série de informações que colaboraram de maneira bastante apropriada com a solidificação e esclarecimento de suas teorias.

Em O Caso Schreber, publicado em 1911, Freud chega à conclusão que "a paranoia é uma neurose de defesa e que seu mecanismo principal é a projeção" (p. 16 da nota do editor inglês). Ele decifra o mecanismo da paranoia de forma bastante clara ao explicar que:

Parece que a pessoa a quem o delírio atribui tanto poder e influência, a cujas mãos todos os fios da conspiração convergem, é se claramente nomeada, idêntica a alguém que desempenhou papel igualmente importante na vida emocional do paciente antes da sua enfermidade, ou facilmente reconhecível como substituto dela (p. 50).

Freud avança na compreensão do caso ao tocar na questão da homossexualidade, e revela que "a causa ativadora de sua doença, então, foi uma manifestação de libido homossexual" (p. 52).

Para entendermos as proposições a que Freud chegou com o caso, o resumiremos nos seguintes termos: o paciente Daniel Paul Schreber a quem Freud analisou à partir da leitura de seu livro1, se revoltou contra seu deus - substituto de seu pai - e seu conteúdo homossexual reprimido retornou como base de seu delírio em forma de paranoia.

É importante ressaltar, no que tange ao tema da homossexualidade a que nos dispomos a investigar, que Freud deixa bastante clara em todo o relato do caso Schreber que existe uma relação bastante intima entre a fantasia homossexual e a paranoia, entretanto, aquela não constitui o mecanismo desta. Ou seja, na paranoia existe uma fixação do sujeito no estágio do narcisismo e que sua forma defensiva se encontra na projeção de sua energia libidinal em termos de agressividade.

 Além dessa elucidação, é importante ressaltar que a ciência psicanalítica auxilia no fomento de novas concepções que contribuem para o entendimento do desejo homossexual. O papel desempenhado pela libido em seu processo de passagem da fase do autoerotismo para o de amor objetal reforça a noção estipulada por Freud acerca da fase narcísica do indivíduo. Tal fase do ser humano marca o período de sua existência em que desenvolve seus instintos sexuais por intermédio de atividades autoeróticas. Em sucedâneo, o indivíduo supera essa fase ao se remeter ao próprio corpo como um objeto de amor, avançando, então, para uma nova fase na qual elegerá um objeto externo como alvo de seu amor.

A questão a ser sublinhada aqui diz respeito ao tempo demasiadamente longo que alguns indivíduos dispendem em determinadas fases, podendo levar para as fases seguintes algumas características da fase anterior, o que, para Freud, pode resultar numa escolha de objeto homossexual, como podemos depreender de suas próprias palavras:

De importância principal no eu (self) do sujeito assim escolhido como objeto amoroso já podem ser os órgãos genitais. A linha do desenvolvimento, então, conduz à escolha de um objeto externo com órgãos genitais semelhantes - isto é, a uma escolha objetal homossexual - e daí ao heterossexualismo. As pessoas que se tornam homossexuais manifestas mais tarde, nunca se emanciparam, pode-se presumir, da condição obrigatória de que o objeto de escolha deve possuir órgãos genitais como os seus (FREUD: 1911, 69).

Além do presente caso, há outro artigo denominado Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância, escrito por Freud em 1910 e que toca de forma bastante profunda na questão da homossexualidade. Na verdade, trata-se de uma monografia, ou, como muitos psicanalistas costumam categorizar, um estudo biográfico em que Freud aplicou suas teorias psicanalíticas - de forma extraordinária, devo acrescentar.

Minha adjetivação se deve ao fato de que todos as conclusões a que Freud chegou acerca do perfil psicológico de Leonardo Da Vinci provém de levantamentos realizados à partir de suas obras visuais e registros documentais a que teve acesso, tornando seu escrito uma obra de valor inestimável, tanto para a psicanálise quanto para a literatura e a história da arte em geral.

Se em Schreber os conteúdos homossexuais reprimidos deram origem a paranoia por intermédio do mecanismo da projeção, em Leonardo da Vinci, adianto, a homossexualidade latente do personagem em questão cedeu ao processo de sublimação, dando vazão à sua ilimitada criatividade e à realização de obras de arte de valor histórico inestimável.

Em meu artigo A Sublimação na Perspectiva Psicanalítica1 publicado em 2019, tratei a questão desse mecanismo de defesa como forma de se proteger dos instintos sexuais reprimidos e que não encontraram na repressão uma solução suficiente. Quando falha a repressão, outras válvulas de escape precisam ser acionadas. Na ocasião, apregoei que a sublimação "toma a ideia de proteção na medida em que procura atenuar o embate direto com as fantasias sexuais, ou seja, proteger o indivíduo da livre manifestação dos instintos pulsionais" (BRAGGIO: 2019, 10).

Essa parece ter sido a questão que norteou toda a vida e obra de Leonardo Da Vinci. Sua homossexualidade, por motivos óbvios, não puderam encontrar descarga libidinal em objetos de amor. Para Leonardo, o Outro era inalcançável. Dessa forma, encontrou nas ciências e na arte uma forma de canalizar suas catexias, como nos conta Freud ao dizer que:

O resultado mais evidente da transformação foi o afastamento de toda atividade sexual grosseira. Leonardo estava capacitado para viver em abstinência e dar a impressão de ser uma criatura assexuada. Quando ondas de excitações da puberdade chegaram ao adolescente, elas não o molestaram forçando-o a procurar formações substitutivas custosas e prejudiciais. Devido à sua tendência muito precoce para a curiosidade sexual, a maior parte das necessidades de seu instinto sexual puderam ser sublimadas numa ânsia geral de saber, escapando assim à repressão (1910: 138).

A análise psicológica a que Freud submeteu a figura de Da Vinci, entretanto, não deixou de considerar outros elementos inter-relacionados que contribuíram para o composé de sua personalidade. Assim, Freud elenca que para "o comportamento de uma personalidade no curso de sua vida é explicado em termos de ação conjugada da constituição e do destino, de forças internas e poderes externos" (1910: 140).

A partir das proposições elencadas por Sigmund Freud, é lícito inferir que a homossexualidade se consolida no sujeito como força da conjugação de diversos fatores, dando ensejo para que a questão seja encarada na esfera do multifatorial e que, caso fosse percebida em seus aspectos separados, incorreria em diversos equívocos interpretativos.

   


Evandro Carlos Braggio

15 de janeiro de 2020


REFERÊNCIAS

BLEICHER, T. Freud e a histeria: do biológico ao social. Disponível em: <https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=https://www.abrapso.org.br/siteprincipal/anexos/AnaisXIVENA/conteudo/pdf/trab_completo_49.pdf&ved=2ahUKEwiYypa82-jmAhVsIbkGHUMYD58QFjAKegQIBRAB&usg=AOvVaw3pycRcC3dRvd1dJuz5WtO7&cshid=1578099793135>. Acesso em 03 de janeiro de 2020.

BRAGGIO, E. A Sublimação na Perspectiva Psicanalítica. Disponível em <https://evandro-braggio.webnode.com/l/a-sublimacao-na-perspectiva-psicanalitica>. Acesso em 06 de janeiro de 2020.

FREUD, Sigmund. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905). In:  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, v. VII, 1996.

______________. Cinco Lições de Psicanálise (1910). In:  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, v. XI, 1996.

______________. Leonardo Da Vinci e uma Lembrança de Sua Infância (1910). In:  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, v. XI, 1996.

______________. Notas Psicanaliticas Sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranoia (1911). In:  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, v. XII, 1996.

______________. Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (1915). In:  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, v. XV, 1996.

______________. Além do Princípio de Prazer (1920). In:  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, v. XVIII, 1996.

______________. A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher (1920). In:  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, v. XVIII, 1996.

______________. Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranoia e no Homossexualismo (1922). In:  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, v. XVIII, 1996.

LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Roudinesco, E. Sigmund Freud na sua Época e em seu Tempo. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2014.